Coluna de Antônio Neto
No início da década de 70, a bicicleta ainda era um artefato de luxo. A frota automobilística da capital era pequena. Algumas motos e só. Os transportes de massa eram as bicicletas e os coletivos. Alguns funcionários, não muito simpáticos aos meios de condução, pessoas de baixa renda, iam trabalhar a pé, pois a cidade ainda era muito tímida.
Tínhamos um amigo que se chamava Geraldo. A sua idade mental não acompanhava a sua idade cronológica. Logo cedo, perdeu a mãe, e o pai não chegou a conhecer. Ficou morando com sua vozinha, que por sinal, era muito humilde e viúva. Moravam numa casa de palha, cravada numa quinta que ela olhava. Ele era grande, mas tinha uma mentalidade infantil. O sonho dele era possuir uma bicicleta. Fazia qualquer mandado se a pessoa desse uma bicicleta para ele dar uma volta.
Houve um tempo que ele andou sumido. A gente quase não o via. Vez por outra aparecia. Queimado de sol. Passou a “roubar” bicicleta. Ele acordava cedinho, e começava a rodar pelo o bairro. Escolhia ficar sempre em frente aos comércios onde as pessoas iam fazer compras. Quando a pessoa entrava no comércio, pegava a bicicleta e saia na tubada. Passava o resto do dia rodando sem vim em casa para almoçar. Quando o comentário foi se espalhando pelo bairro, que havia um ladrão de bicicleta, ele, com medo de ser pego, começou a ir pros bairros vizinhos e depois, passou a ir para o Mercado Central da Piçarra, pois o movimento era maior. Assim, ele levava a vida. A vozinha dele pensava que ele estava no Centro Social Cristo Rei, pois o Pe. Alfredo havia montado uma oficina para ensinar aos jovens de família carente, um ofício. Era uma fabriqueta para fazer “dindim”, bolo e uma marcenaria. Só que o Geraldo estava se especializando na arte de surrupiar “magrelas”.
As notícias foram se avolumando, até que um dia saiu no jornal impresso. Matéria de capa. Manchete em letras coloridas e garrafais. Receoso, recolheu-se. Ninguém ouvia mais se falar em roubo de bicicleta. Ele hibernou, por mais ou menos, uns seis meses. Não saia de casa. Ligado, no rádio da vovozinha, escutava o horário policial. Era louco, mas não era tão louco, não. Tinha medo da borracha da Polícia no lombo. Um detalhe que não posso esquecer, quando montava numa bicicleta, não tinha diabo que o alcançasse. O moleque era bom de direção, e saia voado. Baixava a cabeça, rente ao guidom, arregalava os olhos, abria a camisa e saia em disparada.
Geraldo teve uma recaída, num domingo pela manhã, andava sem intenção, à toa, quando viu uma Caloi no capricho. A bicha era fogosa. Ficou lutando por horas com seu ego, que friviava em suas mãos. Andou, umas três vezes, por três quarteirões para ver se fugia da tentação, mas não houve jeito. Coçava-se todinho, por dentro e por fora. As suas mãos começavam a suar. As pernas começavam a tremer. Salivava como se estivesse diante de um prato saboroso de picanha gorda. Seu coração faltava saltar pela boca. Dizia que tinha um “bicho” soprando ao seu ouvido: “Vai, Geraldo!”. Tentava fugir do pensamento, mas sempre volta mais forte e mais intenso. “Essa daí é linda, cara!” Os pensamentos pareciam ter duas mãos empurrando seu corpo e ele rejeitando com os pés fincados ao chão. “Rapaz, se eu perder essa oportunidade, nunca mais terá outra!”. Pensava na sua vozinha, que não ia aguentar vê-lo ser preso, e na borracha dos soldados da “Ritinha”. Pegou a bicicleta, não houve apelo que desse jeito. Por mais que tenha resistido, caiu na fraqueza. Como dizia: “Quando vejo uma magrela, os meus olhos ofuscam de tanta fissura!”. Sai em disparada, mas alguém viu e alarmou gritando: “Estão roubando a uma bicicleta, João da Carne!”. Pegaram um fusca e saíram à cata do ladrão. Pega, não pega… pega, não pega… O moleque era bom de guidom. Entrava em becos cheios de lama, e o fusca atrás. Pela contramão, e o fusca atrás. Rumou pro Monte Castelo, pois havia muita ladeira e muita lama, e o fusquinha atrás. Estavam construindo o Albertão, e ele conhecia tudo quanto era de buraco. Rumou para lá, e o fusca atrás. Agora, já estava de camisa aberta, suado e o queixo grudado ao guidom. A magrela era tão leve e suave que parecia voar. Estava lubrificada de pouco. Dava cada rabo-de-arraia, nas esquinas, que o proprietário ficava encantado com a sua maestria ao volante. Até a raiva arrefeceu. Era um teste drive. O moleque era bom. Era um ladrão de respeito e sem ambição. Entrou num beco sem saída e foi pego. No momento da raiva, e achando que ele era normal, o proprietário deu-lhe um soco no olho esquerdo, que depois veio a perdê-lo.
O delegado, vendo que não batia bem, procurou conversar de forma cordial. Ele se sentindo seguro, contou tudo. Levou os policiais, onde ele abandonava as magrelas. Encontraram umas quarenta bicicletas, entre Caloi e Monark. Andava até cansar. Como não podia levar para casa, ia abandonando num terreno baldio, que ficava próximo a sua casa. Não voltava a usava as roubadas, pois tinha medo de ser reconhecido. Por medo de ser pego, roubava outra que ainda não tinha Boletim de Ocorrência registrado. O delegado, usando de bom senso, soltou, mas recomendou-lhe: “Não roube mais!” De pronto, respondeu: “Tá bom, seu soldado!”. Depois, passou a chamar-se: Das Chagas, pois dizia que não queria mais ser ladrão. Que o G. era o ladrão, e o Das Chagas o santo.
Antônio Ribeiro de Sampaio Neto, nascido no bairro Cidade Nova, em Teresina(PI), no dia 29 de junho de 1963. Filho de Singleustre Ribeiro de Sampaio e de Marlene Lemos de Sampaio. Ex-funcionário do Banco do Brasil onde ficou por 15(quinze) anos. Cursou Letras Português com Literatura Brasileira e Introdução à Literatura Portuguesa, na Ufpi (Universidade Federal do Piauí). Pai de Ananda Sampaio (Escritora), Raíssa Sampaio, João Victor Sampaio e Bento Sampaio. Atualmente, reside na cidade, ribeirinha, de União(PI). Tem por hobby música(fã incondicional de Belchior – in memorian), livros e cachaça, ao pé do balcão. Adora passar o tempo jogando conversa fora(cotidianas, bobas e triviais à companhia de mentirosos – pescadores e caçadores).